sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Diversão (e a falta dela)

Há dias, a caminho de casa (depois de ter estado na casa de um amigo, com outros dois amigos, a rir e a conversar), numa quinta-feira, dei conta de todo um terceiro andar, com as janelas abertas, de onde emanava música e vozes altas e animadas. Seriam onze e meia da noite.

Quando cheguei a casa, semelhante cenário: vozes e música, ambos em alto volume, não cheguei a perceber de onde. 

A minha vizinha do rés-do-chão, no seu magnífico pátio ajardinado, recebe as amigas e amigos quase dia sim, dia sim.

A primeira reacção que tenho é de satisfação. Fico feliz por haver quem não hipoteque os seus momentos de diversão por causa de uma hipótese remota de apanhar uma constipação, nestes tempos ainda quentes (mais remota ainda é hipótese de morrer dessa constipação, mas isso é outro assunto).

No entanto, tenho receio que isto não dure.

Se os bares e discotecas continuam fechados, e os que não estão fechados tiveram de fazer adaptações e já não são bares e discotecas, então há que ser criativo, para poder, como se diz em inglês, blow off some steam, o que não deixará de ser profundamente terapêutico nos dias que correm.

Em Lisboa sempre se tolerou bastante o barulho feito pelos vizinhos, mas parece-me que se continuar a haver um sem número de festas privadas, espalhado por um sem número de prédios que, por vezes, têm pouca resistência acústica (esta expressão existe?), não vejo que isto venha a ter bom resultado. Os vizinhos, que de início até foram capazes de tolerar a situação e foram compreensivos, começarão a deixar de achar piada a não conseguir adormecer, e o passo seguinte será chamar as "autoridades", se não forem primeiro oferecer porrada, simpaticamente, é claro.

Já é, de facto, ilegal o ajuntamento de pessoas, à boa maneira fascista, e é um instante até deixar de ser tolerado pelo vizinho.

Mais. Se os bares e discotecas não eram por todos frequentados, pelo menos era sabido que existiam e que, se quiséssemos, ali estavam à nossa disposição. Só isto, era já o suficiente para nos serenar.

Para outros, uma ida ou duas por semana, ao bar ou ao café, era também já o suficiente para arejar a cabeça.

Nada disto é hoje possível, ou seja, não é possível libertar o stress de forma "saudável", com uma saída ou outra, e há então lugar à realização de festas privadas, a terem lugar em locais não preparados para o efeito, e onde haverá também lugar a abusos, pois a tensão acumulada é muita, mesmo muita...

Caminhamos para um futuro onde não se perspectiva o lugar para a diversão: casa - trabalho - casa. E em casa, pensas no trabalho, claro, sem teres grande forma de escape.

*

Lembro-me de em tempos ter ouvido contar a seguinte história: numa fábrica chinesa perguntaram a um funcionário, cujo trabalho era o repetir de um gesto específico (qual o gesto, não interessa), o que é que lhe passava pela cabeça naquelas horas em que laborava. O ocidental haveria de esperar que o chinês respondesse que pensava nas férias, no fim de semana, ou na família, algo do género. A resposta do chinês foi: penso em como é que vou conseguir fazer o que estou a fazer ainda mais rápido...

É isto que o Império inveja. Trabalhadores que só pensem no trabalho. O Império inveja o capitalismo musculado que a China hoje apresenta. 

Ora a China, neste aspecto, como em muitos outros, não pode ser, de todo, invejável, apesar de ter uma história e tradições riquíssimas, que vale a pena conhecer. 

Mas, para além disso, está em grande ebulição e o povo, com as suas pressões, já muito tem vindo a conquistar. Sendo já a maior potência económica mundial (apesar de não aparecer ainda como tal no "papel"), está em vias de se tornar um dos países mais fascinantes num futuro não muito distante. Sabemos todos que os países mais desenvolvidos em termos tecnológicos (em termos humanos, ainda há muito a fazer) estão praticamente todos no Oriente.

Entretanto, é tempo de o Império entender que teve o seu tempo, mas que chegou a hora de findar (enquanto Império). Os sinais de que isto está a acontecer, perante os nossos olhares ainda descrentes, são muitos e claríssimos. Infelizmente, para muitos, parece-me que não irá findar sem um enormíssimo estrondo. Era preferível que assim não fosse, mas enfim...

Nós, com todo o respeito que nos merece a China e o povo chinês, não queremos um mundo em que só nos é permitido pensar no trabalho (e atenção que nem a China quer isso para nós; nunca nos deu tais sinais). Quem o quer é o Império, sempre o quis, e agora mostra-o claramente.

Mas nós queremos um pouco mais do que somente trabalhar, trabalhar, trabalhar (apesar de o trabalho não ter de ser necessariamente algo que nos incomoda, que nos chateia, que nos mói o juízo; não o devia ser de todo).

Assim, julgo que é justo considerar que, colectivamente, para além de um trabalho que nos satisfaça, queremos ter tempo para nós, para os nossos gostos pessoais, para a família, para os amigos, para a Vida. E queremos, acima de tudo, que nos deixem estar sossegados, que não nos fodam a cabeça, foda-se.

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